As reformas não devem acontecer!

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“Se essa reforma absurda passar, eu mesmo vou desistir de me aposentar, porque não sei se vou sobreviver para chegar a reunir as condições que estão sendo exigidas”, observou o juiz do Trabalho e presidente da Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho (ALJT), Hugo Melo Filho. Em entrevista ao site da CUT, Melo Filho falou sobre as propostas inconstitucionais de reformas que estão sendo apresentadas pelo governo ilegítimo. Para ele, o ano de 2017 será de muita luta coordenada e articulada entre entidades de defesa dos direitos já conquistados e intensa mobilização nas ruas.

Doutor em Ciência Política e professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Melo Filho defende a retirada imediata dos projetos de Reforma Trabalhista e da Previdência no Congresso Nacional. Para ele, um sinal de conluio entre os articuladores do golpe de Estado está na tentativa de emplacar o nome de Ives Gandra Filho, inimigo da legislação trabalhista, na cadeira da Suprema Corte brasileira.

Acompanhe abaixo a entrevista

CUT: O senhor acredita que o Brasil sofreu um processo de impeachment para que essas reformas altamente nocivas aos trabalhadores fossem implementadas?

Hugo Melo Filho: A minha compreensão do Direito do Trabalho é muito simples: em primeiro lugar não é e nem pode ser fator de emancipação da classe trabalhadora, porque ele funciona como uma espécie de autorização para explorar. Mas ao mesmo tempo, estabelece um limite da exploração. E é justamente esse limite que querem remover. Por quê? Na medida em que se aprova esses projetos que estão tramitando no Congresso Nacional, admite-se, em primeiro lugar, a terceirização sem limites para qualquer atividade econômica, em qualquer momento da produção. Em segundo lugar, permite-se que os empresários, usando de coação econômica, negociem entre aspas com os trabalhadores, que é o chamado negociado sobre o legislado. Em terceiro lugar, vai prever em lei modalidades contratuais absolutamente desfavoráveis, comoo trabalho intermitente, a jornada em tempo parcial, a ampliação para até 12h de trabalho. Ou seja, uma série de alterações que estão sendo sugeridas e irão precarizar ainda mais, alémde ampliar as possibilidades de exploração do trabalho pelo capital para a recuperação das margens de lucro que o capital pretende obter. Então, num momento de crise a solução é fazer isso: ampliar o tempo de trabalho para muito além do tempo socialmente necessário, e com isso aumentar amais valia e assim, as taxas de lucro que estão se reduzindo em virtude da crise.

Agora, essa estratégia não é uma novidade. Aliás, é a lógica dos governos neoliberais. Hoje, o que pode ser considerado novo é a dificuldade da classe trabalhadora em se mobilizar contra o avanço desses retrocessos. As reformas trabalhistas sugeridas pelo governo sem voto são realmente inconstitucionais, conforme o próprio Ministério Público do Trabalho apontou em recentes estudos?

A pauta volta e eu diria, até em outros termos, que as crises conduzem a posições radicais dos interesses econômicos. Por exemplo, a tomada do governo por um golpe de Estado. Pra quê eles fazem isso? Em última análise, não é apenas por um poder político, mas sim para promover alterações que num momento de crise do capitalismo são imprescindíveis para os interesses econômicos. Então, podemos afirmar que tomaram o poder para promover essas mudanças. Isso aconteceu na década de 1990, de outra forma, porque Fernando Henrique foi eleito. Mas durante o governo FHC, diversas alterações aconteceram. Se bem que se for analisar mais profundamente, e abro aqui um parêntese, ele foi reeleito sabe-se como, talvez comprando votos para aprovar a emenda da reeleição, e podemos então questionar a legitimidade da reeleição. Mas, de uma forma ou de outra, durante a gestão de Fernando Henrique, foram promovidas várias alterações. Naquele momento o neoliberalismo estava se colocando como a lógica do capital. E isso impunha a redução de direitos sociais para aumentar a exploração pelo capital. E assim várias medidas foram tomadas durante aquele período.

Nos anos 1990 isso tudo passou porque não existia uma organização adequada dos trabalhadores. Houve reforma da Previdência e Trabalhista, só não passou o negociado sobre o legislado porque especialmente a CUT, junto com a Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), os fiscais do trabalho, o Ministério Público do Trabalho e os advogados trabalhistas se colocaram fortemente no Congresso Nacional e foram postergando até que veio a eleição de um governo popular e o projeto foi retirado da pauta. Com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Executivo Federal, se não houve avanço substancial e, em minha opinião não houve em termos de direitos sociais a não ser, efetivamente, a melhoria do valor do salário mínimo, e claro, também uma difusão da renda mais equânime. Mas o que aconteceu desde então: alguns pontos melhoraram como a situação dos trabalhadores domésticos, que foram reconhecidos como empregados e não sucedâneos dos escravos, onde foram até 2013.

Mas agora, a desarticulação é muito maior. O Congresso é imune a pressões populares porque ali todos foram eleitos pelo grande capital ou são prepostos dos grandes patrões. Então, o golpe veio para fazer as reformas da Previdência e Trabalhista e, de lambuja, todas essas que estão sendo feitas ilicitamente e atropelando a Constituição todos os dias. Na esteira desse ultra-neoliberalismo que se coloca, devemos enfrentar com muito vigor.

Por exemplo, eu como juiz de primeira instância: se essas leis forem aprovadas, não vou aplicar. Vou declarar a inconstitucionalidade no processo. Mas será que o Supremo Tribunal Eleitoral (STF) vai fazer isso? Pelas últimas decisões do STF tenho muitas dúvidas. O Supremo vem aceitando o negociado sobre o legislado com condições piores, aceitando jornada com escala de 12 por 36 (horas).

O maior indicativo que a sociedade teria, hoje, dessa predisposição do STF é a forte corrente que pretende alavancar o atual ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Filho, à vaga aberta com a morte do ministro Teori Zavascki.

Sim, esse seria um reforço importante para o retrocesso. Ele é a favor de todas as mudanças prejudiciais aos trabalhadores. Eu tenho dito que ele é o inimigo número um dos trabalhadores, da Justiça do Trabalho, dos juízes do Trabalho e do Direito do Trabalho. Então, ele vai realçar essa postura reacionária do STF e não é à toa que os blocos conservadores, a classe empresarial, a Confederação Nacional da Indústria, estão postulando a indicação de Ives Gandra e nós estamos, na medida de nossas forças, tentando mostrar que será um erro histórico a indicação, neste momento, para o assento vago na Suprema Corte.

Segundo estudo do Ministério Público do Trabalho é falso afirmar que a reforma nas leis trabalhistas poderá diminuir o desemprego. Quem lembra, na década de 1990 as gigantescas filas em busca de emprego, sabe que não é bem assim que funciona.

Na verdade, a experiência nos mostra que todas as vezes que houve precarização do trabalho com a flexibilização da legislação trabalhista, em nenhum momento verificou-se ampliação de posto de trabalho, nem de massa salarial. Ao contrário! Toda essa precarização levada a efeito no governo de FHC conduziu ao aumento do desemprego e à redução de salário. Se você flexibiliza as relações, o patrão vai ganhar mais em cima do trabalhador, que vai ganhar menos sempre. As empresas não vão contratar. Veja bem, se eu posso exigir mais horas de trabalho do que podia antes, porque vou contratar outra pessoa se eu posso contar com o mesmo trabalhador? A sobrejornada e o tempo total do trabalho são ampliados sem que se aumente o tempo de trabalho socialmente útil. Ou seja, você termina ganhando o mesmo para trabalhar mais e as empresas não precisam desembolsar. Portanto, é ao contrário: o resultado é a ampliação do desemprego e a redução dos salários, sempre! Todas as vezes que se retira o limite que o Direito do Trabalho impõe a exploração, não tenha dúvidas que o capital vai avançar para explorar mais. O capitalismo é uma agenda de acumulação. E para acumular eu vou ter que tirar de alguém que normalmente é o trabalhador.

Atualmente existe um conluio entre o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e a mídia comercial para explicar que é preciso, sim, realizar essas reformas, especialmente a Trabalhista. Existe realmente essa necessidade, tendo em vista que a CLT foi criada em 1943, ou seja, há 74 anos!

Ao contrário. As reformas não devem acontecer! Elas são, na verdade, para atender aos interesses dos empresários. A Reforma da Previdência é de interesse dos bancos para vender Previdência privada. A Trabalhista para atender aos empresários que bancaram o golpe de Estado do ano passado. Por que razão deve se mudar as regras da Previdência? Eles dizem que é porque a Previdência social é deficitária. Os auditores fiscais da Previdência já provaram por A mais B que isso é mentira. Por várias razões: há desvios de recursos da DRU para outras ações governamentais, além da isenção e perdão de bilhões para grandes empresas, sem falar na sonegação que é monstruosa. Mas sempre se procura o mais fácil que é tirar e exigir mais do trabalhador. Agora, que ele passe mais de 50 anos trabalhando ininterruptamente para que possa se aposentar com proventos integrais.

A Reforma Trabalhista vai na contramão, inclusive, do que se está colocando hoje em parâmetros internacionais. Até na agenda do FMI onde a atual Diretora-Gerente Christine Lagarde declarou que as desigualdades sociais têm de ser reduzidas sob pena de colapso do próprio modelo. Neste sentido, as reformas trabalhistas propostas pelo governo sem votos vão exatamente ao contrário: retirar direitos trabalhistas é cortar no osso! Sempre que estou num ambiente de empresários e que me perguntam se eu não acho que é um absurdo o que eles têm de pagar, eu respondo com outra pergunta: o que é que vocês acham excessivo nos direitos dos trabalhadores brasileiros, um salário de R$ 900, uma jornada de 8h, um repouso por semana e intervalo de uma hora. É isso que vocês acham muito?

Se os empresários acham que pagam muito, seguramente não é aos trabalhadores. Existem custos que incidem sobre a produção e sobre a folha de pagamento que eles deveriam negociar com os governos, ou seja, a parte que vai para o Estado. Mas a parte que vai para o trabalhador é o mínimo numa perspectiva civilizatória. Menos do que isso é a lei da selva, seria o estado de natureza, guerra de todos contra todos, o mais forte explorando o mais fraco. O Direito do Trabalho tenta estabelecer esse limite. E, no momento que se diz não existe mais o Direito do Trabalho, nós vamos poder escolher a norma a ser aplicada porque, na verdade essa prevalência do negociado sobre o legislado, é uma espécie de instalação de uma loja de normas, onde alguém escolhe a que melhor convém. E quem tem esse poder de decidir, o trabalhador? Não! Quem toma essa decisão é o patrão que vai escolher que a norma a ser aplicada não é a lei e sim a negociação coletiva. Mas e por que ele vai negociar coletivamente? Porque este projeto admite que se negocie para abaixo do patamar protetivo que a lei já oferece. Isso é um absurdo! O negociado sempre prevaleceu sobre o legislado, sempre. Desde que seja para melhorar as condições. É o que diz nossa Constituição. Ela elenca, no artigo sétimo, os direitos, além de outros que venham a melhorar a condição social do trabalhador. Nunca pode vir uma norma para piorar o que já existe assegurado e nas leis que a regulamentam. E é isso que eles querem fazer. Por exemplo, os dias de férias não estão na Constituição. Lá só está escrito que existe o direito a férias, mas é a lei que assegura esse benefício. O adicional noturno, percentuais de FGTS, insalubridade, também não constam na Constituição. Tudo isso está na lei! Se permitir, não tenham dúvidas que haverá exploração máxima. Nós vamos voltar ao final do século 18, início do século 19, quando não havia o Direito do Trabalho e o que valia era o contrato, uma negociação entre patrão e empregado, que nem sempre era cumprido. Tem outra coisa: essa tentativa de se estabelecer a negociação pré-judicial em relação ao que a lei assegura, na minha visão é o primeiro passo para se instituir uma visão direta e individual, que é proibida. Então, hoje vai ser coletiva, mas amanhã vão querer avançar para que o patrão negocie individualmente com o empregado a redução de direitos.

Fazendo uma análise na América Latina, percebe-se um avanço das políticas neoliberais por todos os lados. Comparando o Brasil com os países vizinhos, o que está acontecendo com a classe trabalhadora brasileira também ocorre na Argentina e no Paraguai, por exemplo?

O governo de Maurício Macri, na Argentina, é um desastre sob o ponto de vista econômico e piorou consideravelmente a vida dos trabalhadores. Existem lá denúncias gravíssimas de assédio. Há demissões massivas, atitudes anti-sindicais e os trabalhadores estão tendo suas condições precarizadas antes mesmo daqui com alterações diversas. A diferença é que lá os trabalhadores estão mais organizados. O movimento sindical está mais estruturado, existe também um equilíbrio político porque os partidários da ex-presidenta Cristina Kirchner estão muito ativos e se opõem duramente às medidas do atual governo que, é bom destacar, foi legitimamente eleito. A população se mobiliza muito mais.

Já o Paraguai é um tubo de ensaio do que aconteceu no Brasil. Lá também existe um golpe em andamento, pois querem impedir o presidente deposto Fernando Lugo (*) de se candidatar novamente, nos mesmos moldes que pretendem aqui com Lula. Ou seja, passados quase seis anos ele continua sendo alvo dessa perseguição. Lá as conseqüências foram as mesmas: precarização e perda de direitos além da informalidade que sempre se amplia quando medidas como essas são adotadas. E nesses países essa situação vem se agravando.

(*) Em um processo de impeachment que durou menos de 36 horas, em junho de 2012 Fernando Lugo foi destituído do cargo pelo Senado, por 39 votos a quatro, depois de um rápido julgamento político em que foi considerado culpado por ‘mau desempenho’, sendo substituído pelo vice-presidente Federico Franco, que assumiu o cargo no mesmo dia da consumação do impeachment.

Fonte: CUT

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